A origem brasileira de
Mann
Livro que será lançado hoje trata da
ligação da família do alemão com o país; proprietário diz que fazenda onde a
mãe do escritor morou em Paraty será centro sobre a cultura local
Por Thais Lobo
Os olhos eram azuis cinzentos. Mas,
por vezes, tornavam-se “negros e brasileiros”. A descrição do filósofo Theodor
Adorno para os momentos em que o escritor alemão Thomas Mann “encontrava a si
mesmo” revela uma porção pouco conhecida da biografia do ganhador do Nobel de
Literatura em 1929. Filho da brasileira Julia da Silva-Bruhns, Mann não chegou
a visitar sua terra mátria, como ele mesmo se referia ao Brasil, mas carregou
em sua literatura as raízes de uma cultura latina.
Autor de clássicos como “A montanha mágica”, “Morte em
Veneza” e “Doutor Fausto”, Mann usou nesses e em outros livros referências
sutis à origem estrangeira da família. Personagens femininas como a mãe de
Hanno em “Os Buddenbrooks” e a do personagem-título de “Tonio Kröger” traziam
em seu perfil um exotismo por terem nascido em terras distantes. Paulo Astor
Soethe, professor de Letras na Universidade Federal do Paraná e autor do livro
“Terra mátria — A família de Thomas Mann e o Brasil”, em parceria com Frido
Mann, neto do escritor, diz que a sensibilidade para a condição do estrangeiro,
para a multiplicidade cultural, é uma característica forte desde as primeiras
obras do alemão.
— Numa carta escrita em 1943, ele disse que as histórias que
ouviu da mãe foram o primeiro contato com o mundo estrangeiro. E esse aspecto é
muito importante porque a constituição de diversos personagens na literatura
deve-se em grande parte a essa experiência — explica.
“Terra mátria” será lançado hoje, em debate sobre o tema, às
20h, na Casa de Cultura. O livro traz documentos inéditos e mostra que, mesmo
distante, Mann manteve-se em contato com a realidade brasileira. Trocou
correspondência com uma prima em São Paulo e com o expatriado Karl
Lustig-Prean, líder do grupo antinazista Movimento dos Alemães Livres do
Brasil. O alemão ainda teve encontros com os brasileiros Sérgio Buarque de
Holanda e Erico Verissimo, e foi cortejado por Gilberto Freyre para que
aceitasse um convite da Academia Brasileira de Letras e visitasse o Brasil, o
que acabou não se concretizando.
“Sempre estive consciente do sangue latino-americano que
pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista. Apenas uma
certa corpulência desajeitada e conservadora de minha vida explica que eu ainda
não tenha visitado o Brasil. A perda de minha terra pátria deveria constituir
uma razão a mais para que eu conhecesse minha terra mátria”, escreveu Mann em
1943, quando estava exilado nos Estados Unidos.
A ligação da família com o país atravessou gerações, de
Thomas Mann e seu irmão Heinrich para o filho Klauss e o neto. Frido Mann veio
ao Brasil pela primeira vez em 1994, com o intuito de fazer pesquisas
históricas em Paraty, Ouro Preto e Salvador para o romance “Brasa” (1999), cujo
título remete à cor vermelha do pau-brasil. Desde então, voltou ao país 16 vezes
e escreveu outras duas obras que fazem parte de uma trilogia dedicada a temas
brasileiros.
— Cheguei ao Brasil com um desafio
literário, mas o desafio biográfico que se apresentou foi muito maior. Foi uma
experiência muito marcante visitar a casa onde minha bisavó morou em Paraty,
onde minhas raízes estão — afirmou, por telefone, Frido, que não havia lido
praticamente nenhuma obra escrita pelos Mann até os 40 anos, quando voltou sua
literatura para a história familiar.
O casarão onde Julia morou ainda existe e é motivo de briga
entre a família Mann e o atual proprietário, o velejador Amyr Klink. A Fazenda
Boa Vista foi a casa da matriarca até seus 7 anos, quando o pai alemão decidiu
levar a família de volta à Europa, dada a morte prematura da sua mulher. O
último proprietário do imóvel era uma empresa de papel e celulose que foi à
falência, levando a um processo de venda judicial da casa. Em abril passado,
Klink e outros cinco sócios conseguiram a transferência de posse em definitivo.
— Não tenho interesse em vender. Já estamos conversando com
institutos culturais para fazer na fazenda um centro de referência ligado à
história de Paraty — diz Klink, que pretende restaurar o engenho, o alambique e
trilhas que eram rota de escoamento da cachaça. — Lamento, mas a cultura de
Paraty é muito mais importante do que a obra de Thomas Mann para a cidade.
Eventualmente podemos até fazer uma exposição do cara que fez “A montanha
mágica”.
Frido pretendia transformar o casarão em um memorial da
família e local de encontro de escritores e artistas, a Casa Mann. Para Paulo
Soethe, o fracasso do projeto é lamentável num momento em que a literatura dos
Mann pode ganhar mais projeção.
— A origem brasileira é uma dimensão inegável da obra de
Thomas Mann e oferece uma ponte concreta entre os universos literários de
Brasil e Alemanha. É uma literatura que já tem um caráter internacional.
Soma-se a isso a popularidade da família na Alemanha. Lá os Mann são como os
Kennedy para os Estados Unidos, ou os Windsor para a Inglaterra — afirma.
Fonte: Jornal “O Globo”, Suplemento da Flip, quinta-feira, 4
de julho de 2013, pág.7.
Extraído e adaptado por: Jefferson Daruich da Gama
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