segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A origem brasileira de Mann - Flip 2013



A origem brasileira de Mann

Livro que será lançado hoje trata da ligação da família do alemão com o país; proprietário diz que fazenda onde a mãe do escritor morou em Paraty será centro sobre a cultura local

Por Thais Lobo

Os olhos eram azuis cinzentos. Mas, por vezes, tornavam-se “negros e brasileiros”. A descrição do filósofo Theodor Adorno para os momentos em que o escritor alemão Thomas Mann “encontrava a si mesmo” revela uma porção pouco conhecida da biografia do ganhador do Nobel de Literatura em 1929. Filho da brasileira Julia da Silva-Bruhns, Mann não chegou a visitar sua terra mátria, como ele mesmo se referia ao Brasil, mas carregou em sua literatura as raízes de uma cultura latina.
Autor de clássicos como “A montanha mágica”, “Morte em Veneza” e “Doutor Fausto”, Mann usou nesses e em outros livros referências sutis à origem estrangeira da família. Personagens femininas como a mãe de Hanno em “Os Buddenbrooks” e a do personagem-título de “Tonio Kröger” traziam em seu perfil um exotismo por terem nascido em terras distantes. Paulo Astor Soethe, professor de Letras na Universidade Federal do Paraná e autor do livro “Terra mátria — A família de Thomas Mann e o Brasil”, em parceria com Frido Mann, neto do escritor, diz que a sensibilidade para a condição do estrangeiro, para a multiplicidade cultural, é uma característica forte desde as primeiras obras do alemão.
— Numa carta escrita em 1943, ele disse que as histórias que ouviu da mãe foram o primeiro contato com o mundo estrangeiro. E esse aspecto é muito importante porque a constituição de diversos personagens na literatura deve-se em grande parte a essa experiência — explica.
“Terra mátria” será lançado hoje, em debate sobre o tema, às 20h, na Casa de Cultura. O livro traz documentos inéditos e mostra que, mesmo distante, Mann manteve-se em contato com a realidade brasileira. Trocou correspondência com uma prima em São Paulo e com o expatriado Karl Lustig-Prean, líder do grupo antinazista Movimento dos Alemães Livres do Brasil. O alemão ainda teve encontros com os brasileiros Sérgio Buarque de Holanda e Erico Verissimo, e foi cortejado por Gilberto Freyre para que aceitasse um convite da Academia Brasileira de Letras e visitasse o Brasil, o que acabou não se concretizando.
“Sempre estive consciente do sangue latino-americano que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista. Apenas uma certa corpulência desajeitada e conservadora de minha vida explica que eu ainda não tenha visitado o Brasil. A perda de minha terra pátria deveria constituir uma razão a mais para que eu conhecesse minha terra mátria”, escreveu Mann em 1943, quando estava exilado nos Estados Unidos.
A ligação da família com o país atravessou gerações, de Thomas Mann e seu irmão Heinrich para o filho Klauss e o neto. Frido Mann veio ao Brasil pela primeira vez em 1994, com o intuito de fazer pesquisas históricas em Paraty, Ouro Preto e Salvador para o romance “Brasa” (1999), cujo título remete à cor vermelha do pau-brasil. Desde então, voltou ao país 16 vezes e escreveu outras duas obras que fazem parte de uma trilogia dedicada a temas brasileiros.
— Cheguei ao Brasil com um desafio literário, mas o desafio biográfico que se apresentou foi muito maior. Foi uma experiência muito marcante visitar a casa onde minha bisavó morou em Paraty, onde minhas raízes estão — afirmou, por telefone, Frido, que não havia lido praticamente nenhuma obra escrita pelos Mann até os 40 anos, quando voltou sua literatura para a história familiar.
O casarão onde Julia morou ainda existe e é motivo de briga entre a família Mann e o atual proprietário, o velejador Amyr Klink. A Fazenda Boa Vista foi a casa da matriarca até seus 7 anos, quando o pai alemão decidiu levar a família de volta à Europa, dada a morte prematura da sua mulher. O último proprietário do imóvel era uma empresa de papel e celulose que foi à falência, levando a um processo de venda judicial da casa. Em abril passado, Klink e outros cinco sócios conseguiram a transferência de posse em definitivo.
— Não tenho interesse em vender. Já estamos conversando com institutos culturais para fazer na fazenda um centro de referência ligado à história de Paraty — diz Klink, que pretende restaurar o engenho, o alambique e trilhas que eram rota de escoamento da cachaça. — Lamento, mas a cultura de Paraty é muito mais importante do que a obra de Thomas Mann para a cidade. Eventualmente podemos até fazer uma exposição do cara que fez “A montanha mágica”.
Frido pretendia transformar o casarão em um memorial da família e local de encontro de escritores e artistas, a Casa Mann. Para Paulo Soethe, o fracasso do projeto é lamentável num momento em que a literatura dos Mann pode ganhar mais projeção.
— A origem brasileira é uma dimensão inegável da obra de Thomas Mann e oferece uma ponte concreta entre os universos literários de Brasil e Alemanha. É uma literatura que já tem um caráter internacional. Soma-se a isso a popularidade da família na Alemanha. Lá os Mann são como os Kennedy para os Estados Unidos, ou os Windsor para a Inglaterra — afirma.

Fonte: Jornal “O Globo”, Suplemento da Flip, quinta-feira, 4 de julho de 2013, pág.7.
Extraído e adaptado por: Jefferson Daruich da Gama


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